Conheça as brigas entre os grupos que creem que Terra é plana

RIO — O mundo dá voltas. Prova disso é que, em 2019, a arcaica crença de que a Terra é plana, em vez de esférica, ressurgiu com uma força surpreendente graças à popularidade de vídeos conspiratórios sobre o assunto. Chamados de terraplanistas, os defensores dessa ideia acabam de ganhar um documentário, “A Terra é plana”(no original, “Behind the curve”), que estreia na Netflix na próxima quinta-feira.

Diretor do filme, o americano Daniel J. Clark — que faz questão de frisar de que tem certeza que a Terra é redonda — conta que chegou a desconfiar que os youtubers que inundam as redes com conteúdos sobre o assunto pudessem ser fakes ou trolls. Mas ao encontrá-los pessoalmente, viu que eles estavam falando muito a sério.

— A grande questão que nos perguntamos no filme é “por que eles acreditam nisso”? A resposta varia, mas as pessoas se sentem muito atraídas pela ideia de que estão sendo enganadas e de que a percepção de que elas têm do mundo é mais acurada do que algo que outra pessoa possa dizer a elas. Quando você pensa que a Terra é plana, tudo é mais simples — explica ele, que vê nos terraplanistas um ponto comum: o endosso a outras teorias conspiratórias, desde o clássico boato de que o homem jamais pisou na Lua às fake news de que o 11 de setembro e outras tragédias nos Estados Unidos foram armadas pelo governo.

As grandes estrelas do documentário, Mark Sargent e Patricia Steere, parecem o perfeito estereótipo para americanos obcecados por conspirações: Sargent mora com a mãe idosa, foi jogador de videogame profissional e está convencido de que vivemos num mundo de ilusões semelhante ao do filme “O show de Truman”. Já Steele é uma radialista vegana fã de gatos e da banda dos anos 1980 The Smiths (ela sonha com o dia em que o vocalista Morrissey entre para o movimento). Mas o documentário evita fazer troça deles. Ao ouvir cientistas e psicólogos, o filme defende que ridicularizar os terraplanistas só vai ajudar a isolá-los ainda mais.

— Mark (Sargent) tem várias histórias engraçadas que não são relacionadas ao terraplanismo, a mãe dele é muito simpática. Me aproximei deles como pessoas, sem mentir sobre o que acreditava. Antes as pessoas podiam ser amigas e ter opiniões diferentes, mas como há muita polarização política hoje, isso ficou mais difícil. Voltar a como era antes seria bacana — defende Clark.

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Embora não acredite necessariamente que o número de terraplanistas está aumentando (eles podem apenas estar mais organizados e barulhentos do que antes), o diretor sustenta que há dois grandes motivos que podem explicar como uma ideia tão anticientífica ganhou tanta evidência nos últimos anos: uma é politização de assuntos científicos diante de interesses econômicos, como a negação do aquecimento global apoiada por Donald Trump. A segunda é a falta de ética e responsabilidade de alguns acadêmicos, que desacreditam a comunidade científica como um todo ao publicar pesquisas com pouco rigor.

— Temos os ovos estragados da ciência, que às vezes querem impor uma agenda e ganhar fama, então publicam seus resultados em algum journal sem reputação. Isso acaba ganhando as notícias, e quando depois prova-se que a pesquisa estava errada, a fé das pessoas na ciência em geral diminui — lamenta.

Endossada nos Estados Unidos pelo jogador da NBA Kyrie Irving e pelo rapper B.o.B., a crença no terraplanismo e em outras teorias conspiratórias têm gerado críticas a gigantes como Google e Facebook, onde conteúdos do tipo abundam sem grandes consequências. No mês passado, o YouTube se comprometeu em reduzir a recomendação automática de vídeos que propaguem informações falsas.

“’Se os terraplanistas acabarem um dia dando a volta ao mundo, vão dizer que alguém aprontou com eles, que foram drogados ou enganados por algum guia’”

DANIEL J. CLARK
Diretor de ‘A Terra é plana’
Para Clark, o ideal não é proibir que conspiracionistas tenham voz, e sim garantir que os argumentos contrários a eles tenham o mesmo destaque nas redes sociais antes que um novo público seja “seduzido” pela ideia. Quanto aos já convertidos, ele acredita que seria mais complicado fazê-los mudar de ideia — nem mesmo se fracassar a recentemente anunciada expedição de navio à Antártida, que os terraplanistas crêem ser “a borda da Terra”.

— O problema dos experimentos conduzidos pelos terraplanistas, baseado nos que eu acompanhei, é que eles nunca vão aceitar as evidências de que estão errados. Se os terraplanistas acabarem um dia dando a volta ao mundo, vão dizer que alguém aprontou com eles, que foram drogados ou enganados por algum guia.

Mas talvez o maior inimigo dos terraplanistas sejam eles mesmos: conforme “A Terra é plana” mostra, há brigas acirradas na comunidade acerca da real natureza da Terra (alguns acreditam que vivemos sob um domo, outros que estamos dispostos em um plano infinito). E um dos pioneiros do movimento, Math Powerland, está em guerra com os populares Sargent e Steere: de uns tempos para cá, ele se deu por convencido de que ambos só podem ser agentes infiltrados da CIA. Os dois, é claro, dizem que isso não passa de uma grande invenção.

O Globo