Após um mês e meio de reuniões e acertos – tratados pelo presidente Jair Bolsonaro como “namoro”, “noivado” e “casamento” –, a atriz Regina Duarte toma posse nesta quarta-feira (4) como secretária de Cultura do governo. Será a quarta ocupante do cargo em 14 meses.
A nomeação da atriz foi publicada na edição desta quarta do “Diário Oficial da União”. Também foram publicadas ao menos 12 exonerações de servidores em cargos de chefia, feitas pela nova gestão.
A cerimônia está marcada para as 11h no Palácio do Planalto. No cargo, Regina terá o desafio de encerrar a rotatividade da pasta e buscar pacificação ou, ao menos, uma convivência mais harmoniosa entre o governo e a classe artística.
Apoiadora de Bolsonaro desde a eleição, a atriz foi convidada para o cargo em 17 de janeiro e anunciou o “sim” duas semanas depois. No fim de fevereiro, Regina Duarte e a Globo anunciaram a rescisão em comum acordo do contrato de mais de 50 anos.
Durante o “noivado”, entre o convite e o aceite, a atriz viajou a Brasília para conhecer a estrutura da secretaria. Chegou a se reunir com a secretária interina, reverenda Jane Silva, que acabou exonerada semanas depois – o governo diz que Regina Duarte não interferiu.
Aos 73 anos, considerada um ícone das telenovelas no país, ela comandará uma estrutura vinculada ao Ministério do Turismo que ultrapassa as barreiras da dramaturgia. Cabe à pasta lidar com temas como economia criativa, direitos autorais, preservação do patrimônio histórico e democratização do acesso a teatros e museus, por exemplo.
A missão dada por Bolsonaro envolve comandar um orçamento de R$ 366,43 milhões em 2020 – 36,6% menor que os R$ 578,3 milhões do ano anterior. Os valores não incluem a verba das sete entidades vinculadas à secretaria, que são as seguintes:
Agência Nacional do Cinema (Ancine), responsável por fomento, regulação e fiscalização do mercado audiovisual;
Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), responsável pela gestão de 27 museus federais e pela política nacional do setor;
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), responsável pela gestão do patrimônio cultural brasileiro;
Biblioteca Nacional, responsável por “coletar, registrar, salvaguardar e dar acesso à produção intelectual brasileira”;
Fundação Casa de Rui Barbosa, criada para divulgar a vida e a obra do jurista – um dos principais intelectuais da história do Brasil;
Fundação Nacional de Artes (Funarte), criada para promover e incentivar o desenvolvimento e a difusão das artes no país;
Fundação Cultural Palmares, voltada à promoção e à preservação da influência negra na formação da sociedade brasileira.
Regina Duarte nunca deu entrevistas sobre o novo cargo, nem disse em redes sociais quais serão as prioridades à frente da secretaria. O G1 ouviu especialistas e ex-gestores federais da Cultura para mapear os principais desafios da atriz.
Exonerações
No dia da posse de Regina Duarte, a nova gestão da secretaria publicou as exonerações de cinco servidores em cargos de chefia:
Dante Mantovani: presidente da Funarte
Ricardo Freire Vasconcellos: diretor do Departamento do Sistema Nacional de Cultura
Paulo César do Amaral: presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram)
Reynaldo Campanatti: secretário de Economia Criativa
Camilo Calandreli: secretário de Fomento e Incentivo à Cultura
Ednagela dos Santos Barroso dos Santos: diretora do Departamento de Promoção da Diversidade Cultural
Maurício Noblat Waissman: coordenador-geral da Política Nacional de Cultura Viva
Raquel Cristina Brugnera: chefe de gabinete da Secretaria da Economia Criativa
Gislaine Targa Neves Simoncelli: chefe de gabinete da Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura
Leônidas José de Oliveira: diretor-executivo da Fundação Nacional de Artes (Funarte)
Marcos Villaça: secretário de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual
Rodrigo Junqueira: secretário de Difusão e Infraestrutura Cultural
Em busca da ‘pacificação’
Primeiro secretário da Cultura no governo Bolsonaro, Henrique Pires diz esperar que Regina seja capaz de conduzir uma “pacificação” entre a classe e a indústria da cultura e o governo federal. A palavra foi usada por outros entrevistados, em referência ao mesmo tema.
“Do ponto de vista político, acho que deveria haver uma pacificação da classe que produz e consome cultura, a fim de achar consensos. Senão, [Regina] novamente terá de cuidar de ‘apagar incêndios’, o que não é a função da secretaria”, afirma.
Henrique Pires assumiu o cargo no início da gestão Bolsonaro e saiu em agosto, após a notícia de que um edital de fomento a obras com temas LGBTI tinha sido suspenso pela presidência. Disse, naquele momento, que não iria “chancelar a censura”.
“A secretaria não é espaço de militância. É espaço de incentivo à economia da cultura com segurança jurídica. Se derivar o discurso para a questão da militância, do ‘nós contra eles’, aí não tem como dar certo”, declara.
O ex-secretário diz ainda que a indústria da cultura precisa de “segurança jurídica” para executar os editais apresentados pelo governo. Isso significa que, uma vez lançadas, as regras precisam se manter até a conclusão das apresentações e dos pagamentos, sem alterações repentinas.
No campo orçamentário, Pires ressalta a importância do reforço das verbas para restauração e preservação do patrimônio nacional – tarefa principal, mas não exclusiva, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
“Essa turbulência que ocorreu na secretaria, colocando diversas sucessões de secretários, acabou impactando no orçamento da cultura em 2020. No patrimônio histórico, ou se reposiciona o orçamento do Iphan, ou vai ter obra parando […] Bom seria que ela pudesse, com o prestígio e a história que tem, tocar a secretaria, no mínimo, com o orçamento do ano passado.”
Na área de museus, o ex-secretário aponta a necessidade de recursos para obras de prevenção e combate à incêndios, como o que destruiu a maior parte do prédio e do acervo do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em setembro de 2018. “É preciso qualificação permanente contra sinistros”, diz.
Cultura como prioridade
Ministro da Cultura no governo Michel Temer, ex-diretor da Ancine e atual secretário de Cultura de São Paulo, Sérgio Sá Leitão aponta dois desafios para o trabalho de Regina Duarte no governo federal:
colocar a cultura como prioridade nas políticas do governo, e
fazer funcionar a máquina da secretaria, dos órgãos e das entidades vinculadas.
“Para isso acontecer, é necessário uma mudança de posicionamento do governo em relação a essa área. É o primeiro e central desafio que ela tem: fazer com que o presidente e o conjunto do governo entendam a importância estratégia da cultura e da política pública para o desenvolvimento do país em termos humanos e econômicos”, diz.
Sobre o segundo desafio, Sá Leitão diz que as indefinições e alterações que marcaram os últimos 14 meses deixaram as entidades federais “paralisadas, ou funcionando muito abaixo da capacidade.”
Questionado sobre a tal necessidade de “pacificação”, o ex-ministro diz que isso poderá vir “ao natural”, caso Regina supere os desafios listados.
“A pacificação virá naturalmente, na medida em que o governo valorizar a área cultural. Virá naturalmente, se a máquina de cultura do governo federal funcionar plenamente. A pacificação será uma consequência natural.”
Assim como Henrique Pires, Sá Leitão manifestou preocupação com a situação orçamentária do Iphan, responsável pela conservação do patrimônio cultural e histórico brasileiro. Esse patrimônio inclui não só os museus, igrejas e prédios tombados, mas manifestações culturais como danças, culinária e outras tradições.
“Tenho preocupação muito grande em relação ao Iphan, que lida com algo muito precioso e relevante para o país, o patrimônio histórico. Quando o Iphan não funciona adequadamente, o patrimônio histórico fica mais vulnerável. Um Iphan fragilizado significa um patrimônio fragilizado”, diz.
Entre 2019 e 2020, o orçamento autorizado para o Iphan caiu de R$ 600,9 milhões para R$ 321,1 milhões. Ao mesmo tempo, o Iphan passou por trocas de comando em parte das 27 superintendências regionais. As mudanças foram contestadas em estados como Minas Gerais, onde uma museóloga foi substituída por um cinegrafista sem experiência de gestão.
Questionado sobre uma possível “guinada nacionalista” na arte – como sugerido por Roberto Alvim, último secretário a comandar a pasta –, Sérgio de Sá Leitão defendeu “absoluto respeito” à liberdade de criação e de expressão.
“Espero que a Constituição seja respeitada e cumprida. É fundamental que haja ambiente de diversidade cultural. É fundamental que haja absoluto respeito à liberdade de criação e à liberdade de expressão. Isso está determinado na nossa Constituição, basta que se respeite a Constituição”.
Desafios setoriais
A presidente da Associação Brasileira de Obras Audiovisuais (Apro), Marianna Souza, disse ao G1 que o grande desafio neste momento será “botar a casa em ordem”.
Como exemplo, citou a Ancine, que perdeu diretores e passou 2019 sendo citada como instrumento para “filtrar” a produção cultural do país.
“No último ano o que vimos foram muitas idas e vindas, e muito pouco foi de fato concretizado. Então, a nossa expectativa é que a Regina consiga, primeiro, chegar, e segundo, conseguir ficar, e organizar um pouco a casa e trazendo parceiros técnicos para auxiliar. Eu acho que essa é a grande lição, botar a casa em ordem”.
O presidente da Associação Nacional da Indústria da Música (Anafima), Lucas Neves, defende a inclusão da música como um ativo estratégico na negociação entre países e blocos econômicos – uma pauta que ultrapassa as atividades usuais da Secretaria Especial de Cultura e o histórico artístico de Regina Duarte.
“Nós buscamos sair daquela coisa do ‘ah, a arte tem que ser livre’, essas coisas. Já tem muita gente falando disso. A gente tem que cair para um ponto de desenvolvimento da música como negócio, como arte, como setor de serviços, como desenvolvimento do turismo”.
Segundo ele, é preciso que o Brasil alcance a visão estratégica adotada pelos Estados Unidos, por exemplo, ao incluir produtos como música e cinema no comércio exterior.
“Eu venho acompanhando há algum tempo a Apex [Agência de Promoção de Exportações, órgão federal], a nossa pauta é que a gente tem helicóptero, tem avião. Escuta: ninguém acredita. Agora, se você falar que tem a melhor música do planeta, as pessoas acreditam. Cria uma imagem muito positiva do Brasil lá fora”, diz.
‘Alívio’ à vista
A atriz, diretora e produtora Carla Camurati afirmou em entrevista à GloboNews, em fevereiro, que considera a escolha de Regina “um alívio” para a classe artística. Ela espera ter na atriz uma gestora pública com melhor contato e compreensão da área.
“É uma pessoa que a gente conversa com ela, que tem acesso, que trabalhou a vida inteira com pessoas e histórias diferentes, na dramaturgia. Dos nomes que a gente teve, a Regina com certeza é um alívio”, disse.
Para Camurati, a política cultural do Brasil precisa ter “diversidade, liberdade e amplitude”, sem a imposição de um modelo único pelo governo.
“A manipulação da cultura é feita por qualquer lado, direita, esquerda, centro, nazismo, fascismo. Todo mundo se aproveita disso […] A política não pode intervir com mão de ferro na cultura”, argumentou.
O atual secretário de Cultura e Economia Criativa do Distrito Federal, Bartolomeu Rodrigues, afirma que a cultura não pode ser posta em “cercadinho”, e que cabe ao poder público estimular a produção de forma livre.
“A cultura não pode ser colocada em cercadinho. Toda tentativa de colocar a cultura em cercadinho não dá certo, ela tem que caminhar livre. […] O Estado tem que dar estímulo e tem que deixar a cultura correr solta, completamente livre, com liberdade”, declarou à GloboNews.
As polêmicas do governo
Na Secretaria de Cultura, Regina terá de conciliar as demandas da classe artística com as declarações fortes dadas por Jair Bolsonaro durante e após a campanha. Em novembro, por exemplo, o presidente disse que a cultura brasileira “tem que estar de acordo com a maioria da população brasileira, não de acordo com a minoria”.
O atual presidente já prometeu que acabaria com a Lei Rouanet, principal instrumento de fomento às artes no país. A lei foi reformulada, e o teto por projeto, reduzido de R$ 60 milhões para R$ 1 milhão na maioria das áreas.
Antes de ser exonerado, Roberto Alvim – que fez carreira no teatro paulista e ganhou projeção ao criticar a atriz Fernanda Montenegro – chegou a anunciar um teto de R$ 10 milhões para o teatro musical. Desde a mudança da lei, o governo não divulgou novos balanços da Lei Rouanet.
Em entrevista ao programa “Conversa com Bial”, em maio de 2019, Regina Duarte falou sobre a lei. Questionada, ela leu um texto que tinha preparado sobre o tema.
“Com relação à Lei Rouanet, transparência é indispensável no uso do dinheiro público. Segundo, até de acordo com a tendência que eu venho sentindo na gestão do ministro Osmar Terra, eu acho que o governo que usa o dinheiro da população deveria apoiar os que estão iniciando na arte. Apoiar os novos talentos, a cultura regional, de acordo com uma legislação específica”, disse.
Ao longo de 2019, o governo também suspendeu editais de fomento voltados para a diversidade de gênero. O presidente chegou a afirmar que, se não pudesse intervir nesses temas, dissolveria ou retiraria autonomia da Ancine.
Das sete entidades vinculadas à Secretaria de Cultura, três passaram a ser presididas por nomes conservadores, com opiniões polêmicas sobre as áreas que passaram a comandar:
Funarte: presidida por Dante Mantovani, músico que relacionou o rock à “cultura do aborto” e ao satanismo, além de chamar artistas brasileiros de “aberrações sonoras”;
Biblioteca Nacional: presidida por Rafael Nogueira, que associou letras de compositores de MPB ao analfabetismo;
Fundação Palmares: presidida por Sérgio Camargo, contrário ao ativismo negro e que já afirmou que a escravidão foi “benéfica para os descendentes.”
Até a publicação desta reportagem, Regina Duarte ainda não tinha informado se pretende manter os presidentes acima nos respectivos cargos.
A principal polêmica da pasta foi protagonizada pelo último secretário a ocupar o cargo, Roberto Alvim. Em janeiro, ao divulgar um concurso de artes, o dramaturgo usou estética e discurso alusivos ao ministro da Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels.
Assim como Goebbels havia afirmado em meados do século XX que a “arte alemã da próxima década será heroica” e “imperativa”, Alvim afirmou que a “arte brasileira da próxima década será heroica” e “imperativa”.
Alvim chegou a falar em uma “coincidência retórica”, mas a reação negativa imediata e contundente dos mais variados setores levou Jair Bolsonaro a demitir o secretário no dia seguinte à divulgação do vídeo.
Ministério em mutação
O Ministério da Cultura foi criado em 1985, como um desmembramento do antigo Ministério de Educação e Cultura (MEC) em duas pastas. Desde então, o órgão foi “rebaixado” para secretaria em três ocasiões.
Em 1990, Fernando Collor de Mello transformou a Cultura em uma subpasta ligada diretamente à Presidência – uma alteração revertida pelo sucessor Itamar Franco. Em 2016, Temer transformou a Cultura em secretaria do Ministério da Educação, mas voltou atrás após pressão do setor artístico.
Em janeiro de 2019, Jair Bolsonaro tirou o status ministerial da Cultura, convertida em uma secretaria especial do Ministério da Cidadania. Em novembro, o governo transferiu a Secretaria Especial de Cultura para o Ministério do Turismo, sem alterar o status da pasta.
As mudanças também ocorreram no comando da secretaria. Desde a posse de Bolsonaro, em 1º de janeiro de 2019, passaram pelo cargo:
Henrique Pires, que pediu demissão ao dizer que não aceitaria “censura”. O comentário fazia referência à suspensão de um edital para séries com temática LGBTI. Ficou no cargo por oito meses.
Ricardo Braga, economista nomeado em seguida como secretário de Regulação e Supervisão da Educação Superior do Ministério da Economia. Ficou no cargo por dois meses.
Roberto Alvim, dramaturgo demitido após a repercussão negativa de um vídeo em que usava frases semelhantes às de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Adolf Hitler na Alemanha nazista. Ficou no cargo por dois meses.
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