Sem spray, Brasileirão 2020 é o que mais tem faltas parando na barreira nos últimos anos

Aos 10 minutos do segundo tempo no clássico entre Botafogo e Fluminense, pela 13ª rodada, Digão faz falta em cima de Pedro Raul. Árbitro da partida, Anderson Daronco perde um minuto inteiro posicionando a barreira tricolor na entrada da área. Luiz Carlos Jr., narrador da transmissão, se queixa: “Que demora para essa formação de barreira!”.

Daronco, então, se afasta, e os jogadores do Fluminense imediatamente começam a andar a passos miúdos para frente, de modo sorrateiro. O árbitro volta e aponta novamente o local correto, já a alguns centímetros atrás. Digão fica indignado enquanto Benevenuto se aproxima apontando para o pulso, gesto universal de quem se preocupa com o tempo – afinal, o Botafogo perdia àquela altura.

No que Maestro Junior emenda:

“Que saudade do spray, hein Luiz!”
Depois de cerca de dois minutos com o jogo parado, quando finalmente acontece a autorização do árbitro, Victor Luís calibra o pé esquerdo, corre para a cobrança e acerta… a barreira. A cena é um retrato do Campeonato Brasileiro 2020, o primeiro desde 2002 em que a arbitragem não conta com o auxílio do chamado spray de barreira.

De acordo com o levantamento do Espião Estatístico, no primeiro turno deste Brasileirão, 1/3 das faltas cobradas direto para o gol pararam na barreira. Esse é o maior número desde que o dado passou a ser contabilizado, em 2017. Daniel Alves, do São Paulo, é quem mais sofre com isso entre todos os jogadores: teve sua cobrança bloqueada quatro vezes.

Brasileirão 2019 até a 19ª rodada

Faltas diretas: 297
Faltas diretas que bateram na barreira: 86 (28,95%)
Gols de falta direta: 9 (3,03%)
Brasileirão 2018 até a 19ª rodada

Faltas diretas: 284
Faltas diretas que bateram na barreira: 76 (26,76%)
Gols de falta direta: 17 (5,99%)
Brasileirão 2017 até a 19ª rodada

Faltas diretas: 301
Faltas diretas bloqueadas pela barreira: 74 (24,58%)
Gols de falta direta: 14 (4,65%)
É óbvio que tudo isso implica na queda no número de gols de falta. Enquanto as edições 2017, 2018 e 2019 do Brasileirão viraram o turno com 14, 17 e 9 gols de falta respectivamente, a de 2020 teve apenas sete até aqui – com a ressalva de que oito jogos adiados ainda vão ser realizados.

– Eu sinto nas cobranças de falta é que a barreira tem ficado muito próxima – se queixa Juninho, volante do Fortaleza, que é um excelente cobrador, mas ainda não guardou nenhum neste campeonato e parou três vezes na barreira.

“Antigamente tinha o uso do spray, que ajudava a manter a barreira na distância correta. Hoje em dia não tem mais, e isso acaba favorecendo o time que cometeu a falta. Além disso, falta tempo hábil para os treinamentos de cobranças. Os jogos são muito em cima um do outro”, completa Juninho.

Árbitro com 14 anos de carreira, dentro os quais sete no quadro da Fifa, Sandro Meira Ricci diz que, sem o spray de demarcação, fica difícil evitar “aquela andadinha” dos jogadores. Ele conta até que andou conversando sobre o assunto com Pedrinho, ex-jogador e parceiro nas transmissões do Grupo Globo.

– O spray realmente era um aliado para garantir a barreira a 9,15 metros e agilizar a cobrança das faltas. Sem spray, os jogadores acabam dando aquela andadinha pra frente, e o árbitro perde muito mais tempo tentando colocar a barreira na distância certa. Conversando com o Pedrinho sobre isso, acho que a Fifa poderia aumentar logo essa distância para 11 metros para favorecer o gol. Acaba que, do jeito que está, a barreira nunca fica a 9,15 metros.

– Sem o spray, é muito difícil para o árbitro de controlar a atitude dos jogadores de irem um pouco para a frente – acrescenta Pedrinho. – Por isso que eu até sugeri ao Sandro, para que ele leve essa sugestão para quem tem que ser levado, de ganhar um metro na barreira. Com 11 metros, obviamente os atletas continuariam andando e chegariam aos 10 metros. O problema é que, com 10 metros, os jogadores andam, e aí fica muito difícil fazer o gol porque é muito próximo. Não dá tempo de a bola subir, passar pela barreira e cair.

 

O ge procurou a assessoria da CBF para saber a avaliação de Leonardo Gaciba, presidente da Comissão de Arbitragem. Mas não houve resposta até a publicação da reportagem.

Mas por que não tem spray?
Desde 2017, o chamado spray de barreira é o centro de ações judiciais entre a Fifa e a empresa detentora das patentes, a Spuni Comércio de Produtos Esportivos, do brasileiro Heine Allemagne. Em suma, Heine briga na justiça para provar que a entidade máxima do futebol agiu de má-fé no sentido de impedi-lo de negociar as patentes por meio de falsas promessas. O processo principal teve o mérito julgado em julho deste ano a favor da Fifa, mas a Spuni recorreu.

 

A empresa é quem sempre forneceu os sprays à CBF para utilização no Brasileirão, Copa do Brasil e diversas competições. A princípio, os produtos eram doados porque ainda estavam em fase de testes. A partir de 2012, com a aprovação da International Football Association Board (IFAB), a CBF passou a comprá-los da Spuni.

Embora o projeto do spray tenha sido criado dentro da CBF ainda nos anos 2000, a entidade nunca se manifestou a favor do brasileiro nesse imbróglio. Pelo contrário. Em fevereiro do ano passado, Carlos Eugênio Lopes, diretor-jurídico da CBF, prestou uma série de esclarecimentos sobre o caso num ofício anexado pela Fifa no processo – e cujo conteúdo só reforça os argumentos da entidade máxima do futebol.

Já em 2020, com o estoque de sprays vazio, a CBF procurou a Spuni para realizar uma nova compra. Dessa vez, a empresa apresentou duas condições: 1) entrar como patrocinadora do Brasileirão, e não mais apenas como fornecedora do produto; e 2) ter o direito fundamental de inventor da ferramenta reconhecido pela CBF. Como as condições não foram aceitas, a compra não foi realizada.

Na primeira rodada do Brasileirão, duas partidas tiveram a utilização do spray: Fortaleza x Athletico e Coritiba x Internacional. Mas porque os aerosóis pertenciam aos árbitros, pois a CBF não forneceu. Ainda assim, a Spuni cobrou explicações da entidade extrajudicialmente. Foi então que, antes da segunda rodada, a CBF oficializou a orientação por meio de um grupo de Whatsapp para que a arbitragem não faça uso da ferramenta em nenhuma competição na temporada.

 

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